Passamos a primeira semana com três preocupações básicas na cabeça: a primeira, conseguir ajustar um pouquinho o fuso horário; a segunda, iniciar o reconhecimento de terreno, coisa que aprendemos que nunca tem fim; e terceiro, preparar-se psicologicamente (ou sei lá o quê) para o primeiro dia no trabalho. Destas três, a última era a que realmente tirava o sono. Eram muitas estórias, experiências isoladas de pessoas com que conversamos… Um enigma a ser desvendado.
Programamos nossa vinda para cá de modo que chegássemos uma semana antes do dia marcado para o Renato iniciar na empresa. A minha data ainda não estava firme, então eu teria mais alguns dias para me entender com a casa, o microondas, as prateleiras do supermercado e a minha pele, que se enchia de feridas por causa do ar seco. Bendita umidade paulista.
Uma certa manhã daquela primeira semana de maio, eu resolvi sair para uma caminhada. O destino eram as ruas do bairro, para descobrir o que havia por perto. O dia estava lindo (coisa rara por essas bandas), com um céu azul e o sol brilhando. O ar ainda estava frio, o que aumentava a sensação de conforto. E eu, toda faceira, feliz da vida na minha melhor versão de mulher exploradora.
Saí do condomínio, desci a ladeira daqui de casa (o nosso condomínio se chama Hillside. Sim, moramos em um morro!), atravessei a avenida principal de Hannam e caminhei em direção a Itaewon, o bairro vizinho ao nosso. Caminhava e absorvia tudo o que via e ouvia. O que eu via, não sei dizer. Durante muito tempo tudo o que eu via era uma grande poluição visual, aquele monte de pauzinhos todos juntos formando palavras em coreano. O que eu ouvia, eu sei dizer o que era. Ruído, só um monte de ruído. Bastava meia hora naquele ambiente para o cérebro querer dormir. Com o cérebro sobrecarregado, três quartos da minha exploração se transformou em surrealismo, porque eu já não tinha certeza do que via e percebia. Sim, a percepção ficou completamente alterada. Que sensação… surreal…
Mas surreal mesmo era o que estava por vir.
No caminho de volta ao apartamento, resolvi caminhar pela avenida principal de Hannam. É uma avenida sem muito movimento de pedestres, pois não concentra lojas, mercadinhos, farmácias. Era exatamente o que eu queria, caminhar sem ver nada ou ouvir ninguém. Faltando uns dez minutos para chegar em casa, percebo ao longe o primeiro transeunte da avenida, um homem na faixa dos 40 anos. Ou algo assim. Agradeci o fato da calçada ser larga o suficiente e sem caixotes ou vendedores ambulantes para que eu não tivesse que desviar ou pedir licença. Ótimo, eu poderia continuar caminhando sem prestar muita atenção em nada. E assim o fiz.
Eis que, de repente, senti uma dor no braço esquerdo. Bati o braço em um poste? Não, pensei, essa calçada não tem poste. Mas que diabos está acontec… Meu Deus, esse homem acabou de me dar um soco no braço! Olhei prá ele, e ele se desembestou a dizer um monte de blás-blás-blás ininteligíveis, mas a linguagem corporal é universal, e essa eu sei ler muito bem.
Quando eu consegui me recuperar do susto para conseguir reagir, ele já tinha ido embora. Mas ainda olhava prá trás e falava alguma bobagem qualquer. ES-SE-CO-RE-A-NO-ME-BA-TEU! Alguns segundos mais tarde, me dei conta de que ele não batia muito bem os pinos, pela forma com que seus olhos se mexiam.
Sim, concluí que ele era louquinho, um dos muitos desequilibrados que andam pelas ruas de Seul. Mas pensei nas minhas remotas aulas de psicologia, do ID com seus desejos desnudos e o EGO refreando o ID. Quantas coisas que pensamos e queremos dizer, mas nosso ego não deixa. Uma mente desequilibrada quebra a relação do id com o ego, então a pessoa fala e faz o que pensa verdadeiramente, sem freios, sem pudor. Eu, mulher, estrangeira, em um país tradicionalmente machista, culturalmente conservador e bairrista. Seria a reação do louquinho que me deu um soco no braço a vontade reprimida e refreada dos homens coreanos em relação às mulheres estrangeiras?
Essa pergunta já fez aniversário duas vezes, e continua sem resposta. Vamos ver se um dia a resposta vem.
Nesse dia, ganhei a primeira trinca nas minhas “lentes culturais”…
Bela trina receptiva. Como dizia um velho programa da tv: brasileiro é tão bonzinho! Escreva mais. Aguardo notícias suas. Beijos.
Oi Selma! Nossa, logo em seu primeiro dia de reconhecimento de terreno dar de cara com um maluco coreano é dose!
Adaptar-se ao fuso horário também não é tarefa facil, ainda mais um fuso de 12 horas. A gente fica zonza, sonada e desgastada…
Aguardo mais cartas!
Beijos.
Como assim? Eles batem nos outros nas ruas? Que é isso…
Bjs,
Tati.
Oi Selma,
As tais das “Lentes Culturais” tem suas vantagens e desvantagens… ao mesmo tempo que magnificam o diferente, e nos abrem a percepção para o novo, elas também servem de filtro para o que não gostamos… mas isso tem um limite, chega o ponto onde as trincas começam a aparecer e a realidade começa a entrar aos borbotões… no nosso caso, talvez por vivermos em um país Latino e com uma lingua que não é tão diferente da nossa, tivemos sorte, essas trincas demoraram mais a aparecer. mas quando apareceram, se destruiram totalmente, fazendo a realidade encharcar nossa vida. Foi bom, pois nos fez racionalizar se valia a pena ou não estar aqui.
O maior desafio é entender que o que vamos experimentar nem sempre é bom (ainda bem que na grande maioria das vezes, é), e que essas experiências nos vão transformar em novas pessoas. Mais fortes, mais seguras, mais preparadas para o “novo”… mas menos ingênuas, menos “naïf”…
[…] somos muito bem-vindos aqui. Sinceramente, nunca sofremos nenhum “ataque direto” (exceto quando a Selma tomou um soco no braço na rua, que ela relatou no blog dela), mas as atitudes, os olhares e as experiências de outros expatriados comprovam isso (um exemplo […]